sábado, 16 de outubro de 2010

Liberdade de Imprensa!!! Onde??? Vergonha para o Brasil

Maria Rita Kehl: "Fui demitida por um 'delito' de opinião"
A psicanalista Maria Rita Kehl foi demitida pelo Jornal O Estado de S. Paulodepois de ter escrito, no último sábado (2), artigo sobre a "desqualificação" dos votos dos pobres. O texto, intitulado "Dois pesos...", gerou grande repercussão na internet e mídias sociais nos últimos dias.

Nesta quinta-feira (7), ela falou a Terra Magazine sobre as consequências do seu artigo:
- Fui demitida pelo jornal o Estado de S. Paulo pelo que consideraram um "delito" de opinião (...) Como é que um jornal que anuncia estar sob censura, pode demitir alguém só porque a opinião da pessoa é diferente da sua?
Leia abaixo a entrevista.
Terra Magazine - Maria Rita, você escreveu um artigo no jornal O Estado de S.Paulo que levou a uma grande polêmica, em especial na internet, nas mídias sociais nos últimos dias. Em resumo, sobre a desqualificação dos votos dos pobres. Ao que se diz, o artigo teria provocado conseqüências para você...
Maria Rita Kehl -
 E provocou, sim...
- Quais?- Fui demitida pelo jornal O Estado de S.Paulo pelo que consideraram um "delito" de opinião.
- Quando?- Fui comunicada ontem (quarta-feira, 6).
- E por qual motivo?- O argumento é que eles estavam examinando o comportamento, as reações ao que escrevi e escrevia, e que, por causa da repercussão (na internet), a situação se tornou intolerável, insustentável, não me lembro bem que expressão usaram.
- Você chegou a argumentar algo?- Eu disse que a repercussão mostrava, revelava que, se tinha quem não gostasse do que escrevo, tinha também quem goste. Se tem leitores que são desfavoráveis, tem leitores que são a favor, o que é bom, saudável...
- Que sentimento fica para você?- É tudo tão absurdo... A imprensa que reclama, que alega ter o governo intenções de censura, de autoritarismo...
- Você concorda com essa tese?- Não, acho que o presidente Lula e seus ministros cometem um erro estratégico quando criticam, quando se queixam da imprensa, da mídia, um erro porque isso, nesse ambiente eleitoral pode soar autoritário, mas eu não conheço nenhuma medida, nenhuma ação concreta, nunca ouvi falar de nenhuma ação concreta para cercear a imprensa. Não me refiro a debates, frases soltas, falo em ação concreta, concretizada. Não conheço nenhuma, e, por outro lado...
- ...Por outro lado...?- Por outro lado a imprensa que tem seus interesses econômicos, partidários, demite alguém, demite a mim, pelo que considera um "delito" de opinião. Acho absurdo, não concordo, que o dono do Maranhão (senador José Sarney) consiga impor a medida que impôs ao jornal O Estado de S.Paulo, mas como pode esse mesmo jornal demitir alguém apenas porque expôs uma opinião? Como é que um jornal que está, que anuncia estar sob censura, pode demitir alguém só porque a opinião da pessoa é diferente da sua?
- Você imagina que isso tenha algo a ver com as eleições?- Acho que sim. Isso se agravou com a eleição, pois, pelo que eles me alegaram agora, já havia descontentamento com minhas análises, minhas opiniões políticas.
O ARTIGO DA DEMISSÃO
Dois Pesos
Maria Rita Kehl - O Estado de S.Paulo

Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.
Se o povão das chamadas classes D e E - os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil - tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.
Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por "uma prima" do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.
Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da "esmolinha" é político e revela consciência de classe recém-adquirida.
O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de "acumulação primitiva de democracia".
Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.
Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos. 



quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Ricos, decadentes e malvados


Em silêncio, porém rapidamente, alguns dos símbolos de civilização e prosperidade que tornavam o “primeiro mundo” orgulhoso e cobiçado estão se desfazendo. Na Europa rica, antigo reduto do “Estado de bem-estar social”, fala-se em adiar a aposentadoria em toda a parte — na Holanda, para depois dos 70 anos… Questiona-se o seguro-desemprego. Eliminam-se serviços de assistência sofisticados (como a renda dos portadores de deficiência e doentes acamados, na Espanha). Coloca-se em xeque conquistas políticas marcantes (como a autonomia regional italiana, ameaçada por cortes dramáticos no orçamento locais). As ilusões de afluência de alguns países dissipam-se: na Irlanda, o PIB despencará 10%, este ano. Os imigrantes retornam (especialmente à América Latina), tornando as sociedades menos diversas. Nos Estados Unidos, dezenas de cidades (entre elas, Philadelphia, Fresno e Colorado Springs) estão desligando parte da iluminação de rua. Por falta de recursos para mantê-las, estradas de asfalto são reduzidas a cascalho. A demissão em massa de professores e a reversão de programas educacionais, obrigam Estados (o caso mais drástico é o Havaí) a reduzir o ano escolar.
Na Europa, embora o desmonte houvesse se esboçado alguns meses antes, seu estopim foi a quebra da Grécia, em maio — e a Alemanha foi o protagonista decisivo. A partir de janeiro, os compradores de títulos públicos gregos passaram a exigir taxas de juros cada vez mais altas para renovar suas aplicações, ou simplesmente migraram para outros papéis. A moeda atacada era o euro, adotado por Atenas desde 2000; devido à pouca importância relativa da economia grega, a sangria poderia ter sido debelada com facilidade, em seu nascedouro, pela União Europeia (UE). Porém, o bloco permaneceu dividido e paralisado. A chanceler alemã, Angela Merkel, comandou o grupo de governantes contrários ao socorro. Argumentou que os gregos viviam acima de suas possibilidades e era preciso forçá-los à disciplina.
A falta de ação alastrou o incêndio. No final de abril, a espiral de juros e a dificuldade de rolar a dívida já atingiam Espanha e Portugal. Especulava-se sobre outros países na fila e temia-se uma crise sistêmica nos circuitos de crédito, semelhante à deflagrada em setembro de 2008, com a quebra do banco de investimentos norte-americano Lehman Brothers. Berlim só flexibilizou sua posição em 10 de maio, após os sobressaltos de uma “sexta-feira negra” nos mercados financeiros. Mas exigiu contrapartidas ultura-draconianas, até então inéditas na Europa.
A Alemanha comandou, política e financeiramente, a formação de um Fundo Europeu de Estabilização. Ele colocará 500 bilhões de euros à disposição dos Tesouros ameaçados pela especulação. No entanto, os países que precisarem recorrer aos recursos estarão obrigados a se submeter, também, ao FMI (que aportará mais € 250 bilhões) e às suas conhecidas condições. O arranjo instaurou um clima de pânico e deflagrou a adoção de “ajustes fiscais” em todo o Velho Mundo (veja, nos boxes, a situação dos principais países atingidos). Como ocorrera em crises anteriores, na América Latina, Sudeste da Ásia e Leste Europeu, as principais medidas foram adotadas sumariamente, sem nenhum debate real entre as sociedades ou mesmo nos Parlamentos. Dominada pelo centro-direita e direita, a maior parte dos governos e legislativos não hesitou em agir contra os serviços públicos e direitos sociais. Mas os social-democratas (no poder na Espanha, Portual e Grécia) tampouco resistiram.
O choque foi agravado porque medidas de austeridade foram adotadas inclusive por países europeus que vivem situação financeira muito confortável. O parlamento francês prepara-se para elevar em dois anos a idade mínima para aposentadoria. A própria Alemanha, que tem superávit comercial superior a € 150 bilhões ao ano e cujo Tesouro capta recursos pagando juros reais em torno de zero, cortou 10 mil postos no serviço público. Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, prevaleciam posições de idêntico sentido. Em junho, o Senado recusou-se a prolongar medidas de apoio aos desempregados decretadas em 2008, embora os índices de desocupação sejam os maiores desde 1930. Obama conformou-se e aderiu ao discurso de “austeridade”. No mesmo mês, o G-20 reuniu-se em Toronto e decidiu (mais uma vez sob liderança da emblemática Ângela Merkel) recomendar a redução dos déficits públicos “ao menos pela metade”, até 2013. O norte-americano Paul Krugman, Nobel de Economia (2008), considerou tal decisão “escandalosa, já que a economia mundial está muito longe da recuperação” — e não será possível reativá-la sem ação dos Estados.
II.
Para que um conjunto tão vasto de medidas impopulares seja possível, um dogma tem sido ressuscitado: o da suposta ineficiência dos serviços públicos. Alardeia-se que os Estados estão gastando mais do que arrecadam. Mas se omitem os motivos. O gráfico abaixo, elaborado pela revista The Economist a partir de estatísticas oficiais referentes ao G-7, mostra que o endividamento estatal oscila, em última instância, ao sabor de decisões políticas. Ou seja, seu aumento ou diminuição são comandados pela sociedade, não por lógicas econômicas imutáveis.
De 1950 a 1973, quando prevaleceram políticas de apoio ativo ao desenvolvimento e ao bem-estar social, que exigiam forte investimento público, as dívidas…diminuíram constantemente. Caíram de mais de 110% do PIB (o esforço exigido pela II guerra atolou os Tesouros de débitos) para 30%. Os Estados souberam usar o elenco de mecanismos de que dispõem para reduzi-las. Já entre 1974 e 2008, foram hegemônicas as ideias que pregavam o “Estado mínimo”, a confiança na alegada virtuosidade dos mercados e, portanto, os cortes de gastos. Nessa fase, contraditoriamente, o endividamento público… cresceu sem parar — até chegar a quase 90% do PIB do G-7. Novamente, o fator decisivo foi a ação dos Estados — então, fortemente comprometidos em transferir riqueza aos mais ricos, a pretexto de “estimular os investidores”.
A seção mais impressionante da curva é a que se refere ao período que vai de 2008 a 2012 (inclui previsões). A trajetória da dívida pública entra em ascensão vertical. Bastam quatro anos para que seu percentual passe a 120% do PIB. É natural: trata-se justamente da fase que corresponde à crise financeira global. Nela, os Estados dispenderam rios de dinheiro para evitar que se repetisse uma depressão dramática como a dos anos 1930. Uma das ações mais onerosas foi o resgate das instituições financeiras que estavam à beira do abismo devido à sua própria irresponsabilidade — e que ameaçavam levar consigo o conjunto das economias.
III.
Mas há algo além de ideologia, por trás da ofensiva contra os direitos sociais e serviços públicos. Ela é uma revanche das elites; uma tentativa de deixar para trás as sérias derrotas econômicas e políticas sofridas nos dois primeiros anos de crise. Do ponto de vista financeiro, a manobra é clara. Nos anos anteriores ao grande terremoto financeiro de 2008, grandes bancos internacionais fizeram aplicações de cerca de 2,5 trilhões de euros na Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha. As garantias oferecidas pela União Europeia e FMI protegem estes recursos contra um eventual calote. Em 5 de agosto a revista britânica The Economist informava que os balanços trimestrais de algumas das maiores instituições financeiras europeias (como o HSBC inglês e o BNP francês) voltavam a registrar lucros expressivos. A causa principal, reconhecia o semanário, é a redução expressiva (40%, no caso do HSBC) das perdas provocadas por empréstimos de risco — em grande medida assumidos pelos Estados.
Além disso, destaca o filipino Walden Bello, da ONG asiática Focus on the Global South, o requentamento do discurso que alardeia a “ineficiência” dos Estados ajuda a remendar a imagem do mundo financeiro, seus grandes executivos e políticos que o apoiam. No auge da crise, a opinião pública revoltou-se contra estes personagens, ao tomar conhecimento de suas práticas de cassino, fraudes costumeiras e salários nababescos. Fenômenos políticos de enorme repercussão, como a eleição de Barack Obama nos EUA, foram possíveis em grande medida graças a esta repulsa. Nos últimos meses, porém, ela tem sido mitigada pelo surgimento de um novo vilão — o governante supostamente perdulário, que a mídia ajuda a demonizar.
A revanche das elites assusta por seu grau de hipocrisia e egoísmo, considera Paul Krugman. Ele ressalta que, em nome do combate ao déficit público, uma maioria de parlamentares norte-americanos, dos dois grandes partidos, está disposta a aprovar qualquer corte de despesas — inclusive as que atingem os serviços de infra-estrutura, os mais pobres e os desempregados. O plano de auxílio-desemprego suplementar, recentemente rejeitado pelo Legislativo, foi considerado “inviável” por custar 77 bilhões de dólares. Mas os mesmos congressistas que o derrubaram rejeitam terminantemente rever as isenções fiscais em favor adotadas durante o governo Bush — embora elas beneficiem apenas os 1% mais ricos da população custem 1,3 trilhão de dólares ao Tesouro. Para Krugman, o que está em curso agora é uma tentativa de consolidar e ampliar o processo de concentração de renda vivido entre 1973 e 2010. No período, “a renda de 90% das famílias norte-americanas cresceu apenas 10%, em termos reais, enquanto o 1% dos mais ricos triplicou de renda” e “a diferença entre os salários dos executivos-chefes das grandes corporações e o rendimento mediano dos trabalhadores passou de 26 para 300 vezes”.
IV.
A que futuro a Europa — e, de forma mais ampla, o antigo “primeiro mundo” — estão sujeitos, se prosperar a revanche das elites? Do ponto de vista social, é fácil enxergar. Além de reduzirem o déficit do Estado concentrando riqueza, os “ajustes fiscais” têm, do ponto de vista da economia internacional, o objetivo de aumentar a competitividade dos países que os promovem. O pensamento ortodoxo prega que, ao se tornarem mais “baratos” para as empresas (salários mais baixos, impostos sobre o capital reduzidos), os países atraem investimentos, produzem e exportam mais. Mas se a mesma receita é seguida por muitas economias simultaneamente, a redução de custos de cada um é neutralizada pelas dos demais. Produz-se o que o economista Randal Wray, da Universidade de Missouri, chamou de uma “corrida para o abismo”, na qual “vence quem for o maior perdedor”. Na Europa, tem frisado Krugman, esta disputa bizarra é agravada pelo ajuste fiscal da Alemanha. País de maior produtividade e enorme saldo comercial frente a seus vizinhos, ela precisaria, em favor da coesão e equilíbrios europeus, elevar seu consumo. Ao reduzi-lo, “vai prejudicar a recuperação da zona do euro, que terá mais dificuldades para exportar”.
Mas Krugman empenha-se em debater as medidas recentes também do ponto de vista da teoria econômica. Cada vez mais pessimista, ele diz temer, em seus artigos para o New York Times, que o egoísmo das elites seja destrutivo a ponto de provocar algo semelhante à Longa Depressão iniciada em 1873 — ou, ao menos, uma estagnação duradoura.
Num cenário de crise global ainda não superada, diz ele, os governos deveriam ter coragem de afirmar que o Estado precisa “ampliar enormemente o gasto público, e produzir déficits orçamentários maiores, para provocar uma recuperação robusta”. Quando ela se realizar, será fácil reduzir a divida. Mas se ela não se produzir, o setor público e a sociedade permanecerão no pântano — e as redução estatística da despesa pública consolará apenas os tolos.
V.
A investida elitista encontra resistências. Conforme mostram os boxes de nossa matéria, na maior parte dos países europeus que iniciaram processos de “ajuste fiscal”, houve protestos e paralisações. Na Grécia, eles se transformaram em autêntica revolta popular. Na Itália, manifestações coordenadas em diversas cidades reuniram 1 milhão de pessoas. Em Portugal, a mobilização repercutiu no parlamento e ajudou a constituir uma frente de oposição às medidas que reúne, além dos três partidos mais à esquerda, dissidentes de centro e centro-direita. Entre os trabalhadores, o setor que mais se mobilizou foi o funcionalismo público — o mais imediatamente atingido pelos cortes de serviços, reduções de salários e ataque aos direitos previdenciários.
Mas estas ações não foram suficientes, até o momento, para evitar retrocessos. Há uma razão objetiva para tanto, já vivida no Brasil. Os “ajustes fiscais” decretados em sequência a crises financeiras assemelham-se à versão política das guerras-relâmpagos. Os pacotes de medidas são apresentados e votados em poucos dias e sob ameaças. Os governantes afirmam que a rejeição das propostas dissolverá o país — e são apoiados pela mídia.
Além disso, é possível que as debilidades das lutas revelem insuficiências mais estratégicas da esquerda. Em quase todos os casos, os protestos enfatizam a resistência, o não. Diante de uma crise, como em face de um incêndio, não basta apontar os que foram negligentes, ou denunciar os que ganharão com a tragédia. É preciso propor uma saída, um sim. E falta visivelmente, aos movimentos que saem às ruas ou paralisam o trabalho, uma alternativa.
VI.
Embora ainda não tenham ganhado as passeatas, alternativas inovadoras estão despontando de alguns pensadores e centros de pesquisa ligados aos movimentos sociais. Sediado em Washington, o Center for Economic and Political Research tem produzido estudos de caso importantes, em geral ligados a países europeus. Um deles, recente, é assinado por Mike Weisbrot. Intitulado “Alternativas à austeridade fiscal na Espanha”, dedica-se à análise dos planos adotados no primeiro semestre pelo governo Zapatero. Considera os cortes de despesas públicas “desastrosos, além de desnecessários. Frisa que ajudarão a elevar o desemprego de 8,5% para 20% da população economicamente ativa.
Mas não param na denúncia: oferecem uma alternativa. Sugerem que o Banco Central Europeu aja como o Fed norte-americano e compre títulos da dívida da Espanha até um limite de 4% do PIB. Na Europa, isso teria um efeito político maior: mostraria que sim, há liberdade; não, as sociedades não precisam se conformar com o corte de direitos.
Num outro artigo, publicado pelo Le Monde Diplomatique francês, James Kenneth Galbraith vai além. Não pensa num caso específico, mas na Europa como um todo. Mas ao invés de reduzir direitos em toda parte, como se faz agora, quer nivelá-los por cima. Não basta, crê Galbraith, recompor o Estado de bem-estar social do pós-guerra. Para enfrentar a ofensiva das elites, é preciso ir além das fronteiras nacionais, construindo “um regime fiscal integrado, um banco central dedicado à prosperidade econômica e um setor financeiro que não cause danos”.
Filho do lendário John Galbraith, James quer chegar a tanto pela trilha de uma igualdade ainda não imaginada sequer pela esquerda. Sugere unificar os regimes de aposentadoria (a partir dos mais completos, “a fim de que os trabalhadores de Portugal, Grécia ou Espanha beneficiem-se das normas em vigor nos países mais avançados”), “um salário mínimo decente parta todos os assalariados da União, e um Banco Europeu de Investimentos para financiar a criação de universidades transnacionais e garantir ensino de qualidade de norte a sul”.
Os custos seriam suportáveis? Galbraith responde que sim, desde que haja, adaptada à época que vivemos, vontade política equivalente à que permitiu o surgimento do Estado de bem-estar social. “Certamente, as reformas implicariam impostos mais pesados. Mas eles afetariam mais os ricos nos países pobres que os pobres nos países ricos”.
VII.
Do ponto de vista das lutas sociais, a Europa é hoje um continente difícil. Uma ampla parcela da população, envelhecida, vê as conquistas sociais mais como privilégios que como direitos. A integração com os imigrantes é problemática — muito mais que nos próprios Estados Unidos. A formulação de propostas como a de Galbraith é um enorme alento, mas seria ilusório esperar que elas se concretizem no curto prazo.
Talvez um outro aspecto mereça, por ora, ser mais celebrado. Depois de cinco séculos, o Velho Continente — e, por extensão, o antigo “primeiro mundo” — perderam grande parte da capacidade exportar suas políticas para todo o planeta. Esta tendência perdurou até um passado muito recente. Ainda na década de 1980, o chamado “consenso de Washington” espalhou-se como rastro de pólvora — especialmente na América Latina –, pouco depois de formulado e proposto.
Agora, o mundo vive uma espécie de insubordinação silenciosa das periferias. Embora sem conflito, seguem-se na Ásia, na América do Sul e mesmo em certos países da África, outras políticas. Ainda que discreta, há certa distribuição de riquezas. No plano internacional, não se aceita mais a suposta superioridade do “Ocidente” branco. Sua supremacia é cada vez mais questionada — concreta e simbolicamente — inclusive no terreno decisivo das finanças.
Em curioso sinal dos tempos, os chineses avançaram, no início de agosto, num território antes vedado: o das agências de classificação de risco, que estabelecem “conceitos” para o crédito dos países. No dia 3, o diário londrino Financial Timesouviu Guan Zhianzong, responsável pela recém criada Dagong Global Credit Rate. Sem meias palavras, o entrevistado afirmou: “As agências de ranqueamento ocidentais são politizadas e altamente ideológicas. Não seguem padrões objetivos”.
A alfinetada tinha respaldo oficial e endereço certo. Horas depois, a agência de notícias Xinhua, de Beijing, publicava um comentário entusiasmado, saudando “o passo importante de quebrar o monopólio ocidental de agências de risco, das quais a China foi vítima por longo período”. Na matéria do Financial Times, o próprio Zhianzong frisou que, segundo os critérios de sua companhia, os Estados Unidos — um dos centros da revanche das elites — “estão insolventes e arriscam-se à bancarrota, na condição de nação puramente devedora”.

Israel impede Nobel da Paz de ir à Palestina


Marinha também impediu com brutalidade desembarque em Gaza de barco tripulado por judeus
A política israelense deteve por algumas horas, anteontem (28/9), uma ativista contemplada com o Prêmio Nobel da Paz. A irlandesa Mairead Maguire (laureada em 1976 por sua ação contra a guerra civil na Irlanda do Norte) pretendia participar, a partir de hoje da conferência We can change, que se realiza em Ramallah, na Palestina ocupada. Militante histórica pela não-violência, foi considerada perigosa pelas autoridades de Telavive, que a obrigaram a voltar a Frankfurt, de onde partira.
Um dia antes, a Marinha israelense havia abordado, invadido e desviado o barcoIrene, que pretendia levar ajuda humanitária a Gaza. Ao contrário das iniciativas anteriores, em mesmo sentido, todos os dez passageiros eram judeus. A carga que transportavam era composta por material escolar, instrumentos musicais e próteses ortopédicas. Foram todos presos.
Na manhã de hoje (30/9), depois de libertados, os tripulantes do barco negaram, em entrevistas, as alegações da Marinha, segundo as quais a abordagem se deu de forma pacífica. “Os soldados foram muito brutais. Não nos mataram, como aos palestinos e muçulmanos, mas agiram com muita violência”, declarou Yonatan Shapira, um dos passageiros. Contou que foi ferido com pistolas teaser.
Outro passageiro, o octagenário Reuven Moskowitz, contou ter desafiado moralmente os soldados que invadiram o barco. Sobrevivente do Holocausto, ele comparou a atitude de Telavive à de governantes que inflingiram grandes sofrimentos aos judeus. “Estamos atingindo uma população de 1,5 milhão de pessoas, entre as quais 800 mil crianças. Quando menino, foi aprisionado por cinco anos, e não esqueço isso até hoje. Tive pesadelos a vida toda e não posso dormir direito. Vocês sabem o que estão fazendo para estas pessoas, e para nossos próprios soldados”?

A mídia comercial em guerra

Sou profundamente a favor da liberdade de expressão.
Esta história de vida me avaliza a fazer as críticas que ora faço ao atual enfrentamento entre o presidente Lula e a midia comercial, que reclama ser tolhida em sua liberdade. O que está ocorrendo já não é um enfrentamento de idéias e de interpretações e o uso legítimo da liberdade da imprensa. Está havendo um abuso da liberdade de imprensa que, na previsão de uma derrota eleitoral, decidiu mover uma guerra acirrada contra o presidente e a candidata Dilma Rousseff. Nessa guerra vale tudo: o factóide, a ocultação de fatos, a distorção e a mentira direta.
Precisamos dar o nome a esta mídia comercial. São famílias que, quando vêem seus interesses comerciais e ideológicos contrariados, se comportam como famiglia mafiosa. São donos privados que pretendem falar para todo o Brasil e manter sob tutela a assim chamada opinião pública. São os donos do Estado de São Paulo, da Folha de São Paulo, de O Globo, da revista Veja, na qual se instalou a razão cínica e o que há de mais falso e chulo da imprensa brasileira. Estes estão a serviço de um bloco histórico, assentado sobre o capital que sempre explorou o povo e que não aceita um presidente que vem deste povo. Mais que informar e fornecer material para a discussão pública, pois essa é a missão da imprensa, esta mídia empresarial se comporta como um feroz partido de oposição.
Na sua fúria, quase desesperados e inapelavelmente derrotados, seus donos, editorialistas e analistas não têm o mínimo  respeito devido  à mais alta autoridade do pais, ao presidente Lula. Nele vêem apenas um peão a ser tratado com o chicote da palavra que humilha.
Mas há um fato que eles não conseguem digerir em seu estômago elitista. Custa-lhes aceitar que um operário, nordestino, sobrevivente da grande tribulação dos filhos da pobreza, chegasse a ser presidente. Este lugar, a Presidência, assim pensam, cabe a eles, os ilustrados, os articulados com o mundo, embora não consigam se livrar do complexo de vira-latas, pois se sentem meramente menores e associados ao grande jogo mundial. Para eles, o lugar do peão é na fábrica, produzindo.
Como o mostrou o grande historiador José Honório Rodrigues (Conciliação e Reforma) “a maioria dominante, conservadora ou liberal, foi sempre alienada, antiprogresssita, antinacional e não contemporânea. A liderança nunca se reconciliou com o povo. Nunca viu nele uma criatura de Deus, nunca o reconheceu, pois gostaria que ele fosse o que não é. Nunca viu suas virtudes nem admirou seus serviços ao país, chamou-o de tudo,  Jeca Tatu, negou seus direitos, arrasou sua vida e logo que o viu crescer ela lhe negou, pouco a pouco, sua aprovação, conspirou para colocá-lo de novo na periferia, no lugar que continua achando que lhe pertence (p.16)”.
Pois esse é o sentido da guerra que movem contra Lula. É uma guerra contra os pobres que estão se libertando. Eles não temem o pobre submisso. Eles têm pavor do pobre que pensa, que fala, que progride e que faz uma trajetória ascendente como Lula. Trata-se, como se depreende, de uma questão de classe. Os de baixo devem ficar em baixo. Ocorre que alguém de baixo chegou lá em cima. Tornou-se o presidente de todos os brasileiros.  Isso para eles é simplesmente intolerável.
Os donos e seus aliados ideológicos perderam o pulso da história. Não se deram conta de que o Brasil mudou. Surgiram redes de movimentos sociais organizados, de onde vêm Lula e tantas outras lideranças. Não há mais lugar para coronéis e de “fazedores de cabeça” do povo. Quando Lula afirmou que “a opinião pública somos nós”, frase tão distorcida por essa mídia raivosa, quis enfatizar que o povo organizado e consciente arrebatou a pretensão da mídia comercial de ser a formadora e a porta-voz exclusiva da opinião pública. Ela tem que renunciar à ditadura da palavra escrita, falada e televisionada e disputar com outras fontes de informação e de opinião.
O povo, cansado de ser governado pelas classes dominantes, resolveu votar em si mesmo. Votou em Lula como o seu representante. Uma vez no governo, operou uma revolução conceptual, inaceitável para elas. O Estado não se fez inimigo do povo, mas o indutor de mudanças profundas que beneficiaram mais de 30 milhões de brasileiros. De miseráveis se fizeram pobres laboriosos, de pobres laboriosos se fizeram classe média baixa e de classe média baixa de fizeram classe média. Começaram a comer, a ter luz em casa, a poder mandar seus filhos para a escola, a ganhar mais salário, em fim, a melhorar de vida.
Outro conceito inovador foi o desenvolvimento com inclusão social e distribuição de renda. Antes, havia apenas desenvolvimento/crescimento, que beneficiava aos já beneficiados à custa das massas destituídas e com salários de fome. Agora, ocorreu visível mobilização de classes, gerando satisfação das grandes maiorias e a esperança que tudo ainda pode ficar melhor. Concedemos que no governo atual há um déficit de consciência e de práticas ecológicas. Mas importa reconhecer que Lula foi fiel à sua promessa de fazer amplas políticas públicas na direção dos mais marginalizados.
O que a grande maioria almeja é manter a continuidade deste processo de melhora e de mudança. Ora, esta continuidade é perigosa para a mídia comercial que assiste, assustada, o fortalecimento da soberania popular que se torna crítica, não mais manipulável e com vontade de ser ator dessa nova história democrática do Brasil. Vai  ser uma democracia cada vez mais participativa e não apenas delegatícia. Esta abria amplo espaço à corrupção das elites e dava preponderância aos interesses das classes opulentas e ao seu braço ideológico, que é a mídia comercial. A democracia participativa escuta os movimentos sociais, faz do Movimento dos Sem Terra (MST), odiado especialmente pela Veja (que faz questão de não ver…), protagonista de mudanças sociais não somente com referência à terra mas também ao modelo econômico e às formas cooperativas de produção.
O que está em jogo neste enfrentamento entre a mídia comercial e Lula/Dilma é a questão: que Brasil queremos? Aquele injusto, neocolonial, neoglobalizado e no fundo, retrógrado e velhista? Ou o Brasil novo com sujeitos históricos novos, antes sempre mantidos à margem e agora despontando com energias novas, para construir um Brasil que ainda nunca tínhamos visto antes.
Esse Brasil é combatido na pessoa do presidente Lula e da candidata Dilma. Mas estes representam o que deve ser. E o que deve ser tem força. Irão triunfar a despeito das má vontade deste setor endurecido da mídia comercial e empresarial. A vitória de Dilma dará solidez a este caminho novo ansiado e construído com suor e sangue por tantas gerações de brasileiros.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Massacre de Srebrenica - Maior genocídio do pós-guerra completa 15 anos

Há 15 anos aconteceu na cidade de Srebrenica, na antiga Iugoslávia, o maior massacre cometido na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Em apenas uma semana, entre os dias 11 e 15 de julho de 1995, 8.373 bósnios muçulmanos foram mortos por tropas sérvias. 
Os crimes foram cometidos durante a Guerra da Bósnia (1992-1995), iniciada após a queda do regime comunista na antiga Iugoslávia. Até hoje os corpos das vítimas, exumados de valas comuns, são identificados por meio de análises de DNA. O general Ratko Mladic, um dos responsáveis pelo massacre, continua foragido.

A região dos Balcãs, onde ocorreram os conflitos, é marcada por histórias de invasões estrangeiras e disputas de cunho étnico, religioso e nacionalista. Nesse contexto, desavenças políticas, combinadas com a ineficiência da comunidade internacional na mediação da guerra, compuseram o palco para o genocídio.

A Guerra da Bósnia teve ampla cobertura da imprensa internacional e mostrou cenas semelhantes ao holocausto dos judeus na Alemanha nazista: cidades sitiadas, campos de concentração, mortes em massa e posteriores julgamentos dos criminosos no Tribunal Internacional de Haia.

Antecedentes

Durante 500 anos, os Balcãs foram dominados pelo Império Turco-Otomano. Com a assinatura do Tratado de Berlim de 1878, Romênia, Sérvia e Montenegro se tornaram independentes e foi criado o principado da Bulgária.

No começo do século 20, eclodiram lutas por independência. Em 1914, Franz Ferdinand, herdeiro do Império Austro-Húngaro, foi assassinado junto com sua mulher por um extremista sérvio-bósnio em Sarajevo. A Áustria declarou guerra à Sérvia, dando início à Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Após a guerra, surgiram os Reinos dos Sérvios, Croatas e Eslovenos (incluindo a Bósnia-Herzegóvina), unificados sob o nome de Iugoslávia (que significa "terra dos eslavos do sul") pelo príncipe regente Alexandre Karadjordjevic.

Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazistas invadiram a Bósnia, fragmentando novamente o território. Ao final da guerra, com a derrota do Eixo, a Iugoslávia, sob o governo comunista de Josip Broz Tito, se torna uma federação que reúne seis repúblicas - Croácia, Eslovênia, Macedônia, Montenegro, Sérvia e Bósnia-Herzegóvina.

A queda do Muro de Berlim, em 1989, desencadeia o colapso dos Estados comunistas no Leste Europeu, entre eles a Iugoslávia. Do mesmo modo como aconteceu em outros países, a ditadura que mantinha a aliança multinacional não foi sucedida por uma democracia ou pela formação de um Estado civil. Pelo contrário, fez reacender antigas dissensões entre identidades regionais, étnicas e religiosas, em grupos que se mobilizaram politicamente para defender seus territórios.

Apesar de viverem em comunidades diferentes, bósnios muçulmanos, sérvios ortodoxos e croatas católicos compartilhavam não somente origens históricas e geográficas, mas também um modo de vida. No entanto, com a desestabilização política do país, grupos nacionalistas catalisaram as diferenças existentes, utilizando-as para promover os massacres que se seguiram.

Em 1991, a população da Bósnia era composta por 43,7% de muçulmanos, 31,4% de sérvios e 17,3% de croatas. Em Srebrenica, a população era de maioria muçulmana (72,9%), contra uma minoria sérvia (25,2%) e poucos croatas (0,1%). No mesmo ano, Eslovênia e Croácia declararam independência, seguidas pela Bósnia. Os sérvios, porém, não aceitaram o Estado da Bósnia e, liderados por Radovan Karadzic, ocuparam 70% do país e deram início a uma campanha de "limpeza étnica" para formar a República Sérvia.

Genocídio

Para fugir da guerra, milhares de bósnios se refugiaram em cidades como Srebrenica, que se tornou um enclave muçulmano. Na tentativa de prevenir crimes de genocídio, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou, em 16 de abril de 1993, a Resolução 819, por meio da qual a cidade de Srebrenica (e seus arredores) foi considerada Área de Segurança, onde não poderiam ocorrer mais ataques.

A segurança da população ficou a cargo de soldados holandeses da Unprofor (Forças de Proteção das Nações Unidas) e os bósnios foram desarmados. Os holandeses, contudo, não puderam conter a ofensiva sérvia.

Assim, quase dois anos depois, no começo de julho de 1995, Srebrenica foi recapturada pelos sérvios depois de renderem a base da ONU. Os bósnios pediram a devolução de suas armas para combater os sérvios e não foram atendidos. O comando holandês, por sua vez, solicitou reforço aéreo à ONU, porém os soldados foram feitos reféns para evitar bombardeios.

No dia 11 de julho, o líder servo-bósnio Ratko Mladic entrou na cidade, consolidando a conquista. A capital Sarajevo resistiu por quatro anos ao cerco, considerado o mais duradouro na história moderna.

Os muçulmanos foram feitos prisioneiros e separados em dois grupos: cerca de 23 mil mulheres e crianças foram deportadas para territórios muçulmanos, enquanto homens e adolescentes foram detidos em armazéns e caminhões. Em seguida, os homens foram enfileirados e executados por soldados sérvios e grupos paramilitares. Os corpos foram enterrados em valas comuns.

Após o massacre, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) bombardeou as posições sérvias. Os Estados Unidos pressionaram os líderes bósnios, sérvios e croatas para um acordo de paz, que saiu em 21 de novembro 1995. O Acordo Dayton (chamado assim por ter sido assinado na Base Aérea de Dayton, no estado americano de Ohio) reconheceu dois Estados autônomos: a República Sérvia da Bósnia e a Federação da Bósnia-Herzegóvina ou Federação Muçulmano-croata. Mas já era tarde demais: o genocídio havia "limpado" territórios antes compartilhados por ambas as culturas.

Julgamentos

O massacre de Srebrenica foi oficialmente reconhecido em 2004 pelo Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, nos Países Baixos. A Corte também começou a julgar os responsáveis pelo crime.

Radovan Karadzic foi preso em 22 de julho de 2008 e está sendo julgado pelo Tribunal de Haia por crimes de guerra. Outras 21 pessoas foram indiciadas e algumas condenadas a penas superiores a 30 anos ou prisão perpétua.

O presidente da Sérvia, Slobodan Milosevic, morreu na cela, em 11 de março de 2006, enquanto era julgado. O general Tatko Mladic foi indiciado mas até hoje não foi preso.

Em 2003, foi inaugurado o Memorial Cemitério de Potocari, em Srebrenica, onde foram sepultadas mais de 5 mil vítimas do massacre que puderam ser identificadas por peritos da Comissão Internacional de Pessoas Desaparecidas (ICMP). Os corpos foram descobertos em mais de 70 valas. Em março de 2010, o Parlamento Sérvio pediu desculpas às famílias das vítimas.